ETIMOLOGIA DE BUÇACO E OUTRAS HISTÓRIAS
D esde a base da capela circular de Stº Antão , isolada no alto
dum penhasco,rompe da encosta um aglomerado rochoso que para
lá da citada capela se prolonga a oriente até ao terreiro do Calvário
e do Sepulcro. Foi neste segundo ponto que resolveram os construtores
da Via Sacra figurar o termo da chamada‘Paixão de Cristo’,
claramente os atos finais da cerimónia evocativa
representando as últimas estações, e as ermidas do Calvário e
do Sepulcro que acrescentam á simplicidade dos Passos , a penitência
dos monges.
Sai da rudeza deste chão, alçado sobre a penedia, uma vista livre e
abrangente de grande beleza e solenidade. A seus pés, foi nos
finais do séc. XIX e principio do XX, destruída grande parte do velho
mosteiro de Santa Cruz do Bussaco,pertencente á Ordem dos Carmelitas
Descalços, e no seu lugar construído um palácio e pavilhão de
caça para utilização do rei D. Carlos, estruturas que a realeza não
chegou efetivamente a utilizar e que por falta de objectivos e dinheiro
se transformaram depois num hotel.
A beleza humilde dos pobres anacoretas , retirados de Sintra pela
presença da corte aquando da escolha do local para a instalação do
deserto, foi agora substituída,cerca de trezentos e cinquenta anos
depois, pela presumida vinda do rei com o esplendor e o rebuliço da
mesma que incluiria sem dúvida nenhuma o aparato duma clientela
inócua, viciada e falida, todos os que cronicamente sobreviviam
das gamelas reais e dos impostos lançados sobre o povo e que
impediram os frades de estabelecer o deserto em Sintra quando
da sua fundação.
Mais ou menos como hoje, segundo os excelentese claros
relatos de Eça de Queiroz e outros testemunhos da época entre eles as
figuras de Rafael Bordalo Pinheiro, o reino balançava na mesma
vergonha e banca rota e em lutas intestinais pela mudança de regime.
O desenho do cenógrafo italiano Manini, ao invés da voluntária pobreza
e rude talha dos eremitas apresenta-se pois conforme a ostentação de
reis e cortesãos, um conjunto arquitetónico manuelino e revivalista
que iria ser construído com o apoio da escola Coimbrã ,o calcário de
Ançã e o picão de Anacleto Garcia.
A magnificência do trabalho,dos rendilhados, da azulejaria,das salas,
do pavilhão de caça ,conferiu aos trabalhos um cunho de
beleza e qualidade que veio depois a servir para a instalação de um
dos primeiros hotéis de luxo deste país que foi pioneiro na nova
industria nascente, a industria do turismo e hotelaria.
Para chegar a este ponto intermédio, dele não se pretende passar,
foi preciso a perspicácia, a humildade, o misticismo e a paixão dos
frades que aqui habitaram desde a primeira metade do séc. XVII,
dotando o espaço selvagem então existente , do convento e adereços
religiosos a par do património botânico pacientemente
plantado e garantido com amor e devoção.
Dessa recolha transporte e plantação com plantas do novo
mundo das mais variadas espécies, está por escrever a história
e a força com que o fizeram e assumiram em missão.
Juntemos a estes espolios botânicos e religiosos o pedaço da invasão
napoleónica que se escreveu nas encostas da serra e teremos á
mão o posto perfeito para um polo importante dedesenvolvimento
turístico de que este centro de Portugal precisa ,coisa que não
tem acontecido por falta de mãos e de cabeças e também por
excesso de oportunismos , pensamento aldeão e
sucessivas visões tão atrasadas quanto anacrónicas.
Esta é a história breve dum Buçaco concreto , outra história,
a etimológica, não é clara ou não existe, resume-se a lendas e
invenções sem credibilidade, não só porque não há
testemunhos dos relatos como o enredo de que são feitos é
pobre e frágil. Mesmo assim fala-se do berço das palavras e da
sua localização e por tal motivo vou repetir com os
costumados ingredientes, histórias que estão contadas e que
eu próprio recontei.Vamos pois relembrar.
Entre a capela de S. Antão por onde comecei este texto e o
terreiro do Calvário ,ziguezagueia serra acima uma estreita e
deslumbrante vereda , regra geral tão mal tratada que aqui e ali
pode desaparecer no vegetal, e que pouco antes de atingir o já
citado terreiro no Sepulcro , margina grossas e soltas penedias
sobrepostas que fazem nos seus remates uma espécie de abrigo
ou gruta a que a empírica ciência popular chamou Cova do Negro.
Diz a lenda, que é disso que se trata, que em tempos não relembrados
ali se instalou um perigoso bandido de cor negra fazendo daquele covil
um ponto de permanência e de partida para os atos de ladroagem que
praticava sobre gados e haveres nas aldeias da vizinhança e de tal sorte
era insistente e cruel nas suas arremetidas que chamavam as gentes
á gruta donde partia Cova ou Toca do Boçal, sabido que era então
o nome de Boçal aplicado aos negros de cor madura, pretos retintos
para os distinguir de mulatos e crioulos.Esta palavra boçal terá o uso
e o tempo burilado na gramática, dando azo a Buzaco, Bussaco e
recentemente Buçaco.
A contrapor a esta lenda brutal temos uma outra , a do velho e bom
ancião,um venerável habitante das redondezas que, junta com a anterior
faz uma clara dicotomia entre o bem e entre o mal. Aqui, o bom homem
habita numa aldeia por ali perto e por questões de feitio , misticismo
ou conveniência,muitas vezes procura a solidão do monte para rezar
e fazer penitência ,premonizando talvez a vinda dos eremitas.
Perder-se-á dias, semanas, meses na solitária imensidão dos montes
e , regressado ao povoado, perguntando-lhe vizinhos e conterrâneos
sobre o que fez e encontrou por lá, responde lacónico:
--D’aquele monte saco bus !
A mesma trama gramatical recompõe silabas, palavras e surge a
mesma proposta,o Buzzaco, o Bussaco, o Buçaco dos nossos dias.
Por fim, uma versão mais prática e atrevida , relaciona o Buçaco
um deserto que existiu no Lácio, Itália, no qual S. Bento, o fundador
da Ordem dos Beneditinos , passou três anos em obediente e humilde
penitência.
Deste facto escreve a cortesã e poetisa Bernarda Ferreira de
Lacerda no seu livro Soledades do Bussaco:
En aquellos siglos de oro
Y venturosas idades
Qual el Lacio Sublaco
Solia el monte llamarse.
A titulo de finalização, direi que a primeira referência ao nome
Buzaco aparece em latim bárbaro no ano de 919 , numa doação do
lugar de Gondolim ao mosteiro de Lorvão. Diz assim:
…com suas valles que discurrent de monte buzaco. (1)
Em 1006 ,Froila Gundizalves doou ao mosteiro Vacariça o seu casal de
Uillanoua subúrbio colimbrie inxta monte buzzaco…(1)
Em 1016 , no Livro Preto da Sé de Coimbra , se refere:
in loco predicto Uaccaricia subtus mons buzaco território colimbrie.
Sobre a primeira lenda do negro boçal, existe um belo texto
de Alberto Pimenta,contando em versos a história do ladrão
que terá dado origem á hipotese da primeira versão do nome.
(1- ) Portugalia Monument.a História,V1,pág.14
( Escrito de acordo com o novo acordo ortográfico)