BUDAPESTE, UMA CRÓNICA DE JORNAL
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Se bem se lembram os leitores que fazem o favor de me ler estas croniquetas desinibidas, foi em Agosto de 2009 que escrevi o episódio do salame gigante de Buda e Peste, saboreado no bar de tavolla freda ao fundo do apartamento, 109 da Via Betollo, na cidade de Génova. E lembram-se que prometi pagar a divida e representar ao mesmo tempo a gastronomia deste nosso país da beira mar atlântica, levando um avinhado salpicão da beira á numerosa tertúlia do crepúsculo, dizia, gente do quartiere que se junta ali ao fim da tarde para chiachierare sobre tudo e sobre todos.
Foi um ano depois, em Agosto de 2010 que cumpri o prometido, e esmerado como pretendo ser nestas representações, levei meia dúzia de salpicões caseiros do talho de Penacova, um naco de presunto que me trouxe de Chaves o novo genro e outra meia dúzia de alheiras de Mirandela que só de as observar faziam crescer água na boca. Tudo emalado num saco hermeticamente fechado, foi o Verão a época escolhida, pela simples razão de me deslocar em viatura e fugir assim ao controle dos aeroportos, não me admiraria que me abrissem a mala de porão e me controlassem o tesouro para boca de saco alheio. E para levar meia dúzia garrafas de vinho branco bical da Adega da Mealhada para o dar a saborear àquela gente de lá.
No bar já não servia a ragazza da Antonella, a Paola, mas Giovana , uma mulher feita que tomou o bar de trespasse e o administra com a sua própria presença. Trinta e poucos anos, face bonita, corpo bem feito, divorciada, dois filhos, um rapazinho no último ano do básico e uma menina mais crescida com a cara, dizem, da Maria Madalena de Da Vinci, num corpo quase feito de mulher.
Simpática e profissional a tirar da máquina do café um cheio de se lhe tirar o chapéu, quente e saboroso como é de minha feição e gosto. Foi a primeira coisa que fiz quando cheguei, elogiar o café que fez o favor de me servir na pequena esplanada do lado de fora do bar. Grazzie mille, respondeu!
E comecei a ler o jornal ,o Século XIX.
Ao fim da tarde não falhou a tertúlia. Cumprimentos para aqui e para acolá, a saúde, a vida, Portugal, Berlusconni, o genoa, a samp, enfim uma panóplia de assuntos que decorrem dum novo encontro, embora não fosse assim tão distante a precedente partida. E uma garrafa de Asti, um espumante adocicado que me não enche as medidas selou a reentrada entre os tertulianos.
-Salvé professore Giusephe Borgogni ! Hip! Hip!
E assim se mandou chamar a Teresa do Marinella, decana do gourmet e ex patroa do restaurante da passiegiatta Anita Garibaldi que se debruça sobre o mar Ligure. Demorou a chegar nos seus noventa e tal anos de idade, mas depois de se evocar em conjunto o salame do ano anterior, serviu-nos uma respeitável dissertação sobre o próprio e sobre Budapeste, onde se fabrica, na beira do Danúbio e entre as três cidades unidas de Buda, Peste e Obuda. Confesso que nunca fui a Budapeste, mas fiquei a conhecer a cidade como se lá tivesse estado, das estreitas ruas de Peste á ponte Elisabeth, ao Castelo Real, á Opera, á Basílica de Stº Estêvão, ao Palacio da Imperatriz ou á Praça Liszt onde se pode comer uma sopa de goulash, uma deliciosa panqueca ou saborear queijos, salames e salsichas, tudo aliás do tamanho da própria urbe, a sexta, em extensão, na Europa.
Acreditei então que a virtualidade se pode transformar facilmente em coisa real, como aliás já vinha desconfiando desde que a net é net e arranjamos conhecimentos, amizades e até amores em qualquer parte do mundo e nos afeiçoamos a eles criando laços como se estivéssemos em boa verdade presentes. Às vezes, falta apenas o pequeno periférico, um ship transportador de partículas que não existe ainda, para tocar no outro, beijar, abraçar ou apalpar. Assim fiquei a conhecer Budapeste, lá onde morou a Sissi de Romy Schneider , dos velhos filmes e sonhos cor-de-rosa num mundo de fantasia. E fiquei a gostar, passei a fã com a promessa de verificar in loco na primeira oportunidade.
Bem, com outra taça de Asti o professor queria seguir já no outro dia, mas adiantei que nada se poderia fazer antes da merendola lusitana. E a tertúlia decidiu que não.
No fim aprazámos o dia, melhor dizendo, o fim da tarde, primeiro provisório, dias depois tornado definitivo. Tudo por minha conta excepto o doce, que ficou reservado ao bar esse serviço, a par do Asti adocicado e da refrigeração de seis garrafas do branco bical da Adega da Mealhada que havia de trazer para baixo juntamente com os enchidos na manhã respectiva.
E assim foi, depois de requisitar os serviços da ragazzina, a Giovana, para me ajudar nos preparos. Apesar do bar ser de frios, cozinha a rapariga muito bem os quentes e quando é preciso, acende o fogão de gás e faz uns deliciosos pratos de spaghetti alla putanesca ,pasta di mandorle, risotto al sugo, raviolis ou tagliatela , que são o anti primo e o primo de muita gente , além de fazer uma dobrada á moda genovese que nada fica a dever á dobradinha tripeira. Excepto na apresentação, aqui não se juntam os componentes do prato numa miscela ou mistura de sabores, come-se primeiro a massa e só depois a dobrada embebida nuns molhos de zafferano, burro e peperone que lhe dão divinos aromas. O único senão é eu não poder comer destas coisas. É que há oito anos a esta parte, namorava uma viúva que gostava do passeio. Então corríamos Portugal de lés a lés, do Vau ao Castro Laboreiro, da Foz do Arelho a Segura, gozando dos rendimentos, da paisagem, do gourmet e doutros prazeres carnais, dançando para digerir as gorduras, correndo para evitar o colesterol, o que não foi suficiente para escapar a fraquezas do coração entre um tango e um passe doble numa sexta-feira á noite, e ser hoje obrigado a não abusar dos temperos.
O professor, que sabe destas mazelas que as teve também na pele, nos seus tempos de director da cardiologia do Hospital de S. Martino, se me vê a abusar destas tentações e pecar, põe-me rispidamente a mão no ombro e quase me grita ao ouvido: Non Madonna mia, fermate !!!! e repete, Nera Madonna ! Nera Madonna ! E eu procuro fermare, ou travar, que é a mesma coisa.
Na tarde aprazada estava um calor recalcitrante. Insuportável. Os trinta quilómetros de falésias que marginam a cidade ao longo do mediterrâneo eram um vespeiro de gente, mas á hora marcada, seis da tarde, a Teresa, a Maura, a Graça, a Stefanie, o Professor, o Saviano e o resto da tertúlia apresentaram-se ao toque.
Da cozinha elevava-se o cheiro das chouriças penacovenses grelhando com lentidão, enquanto a Giovana mais um candidato a namorado, um emigrante esloveno que trabalhava lá para os lados de Sampierdarena e se apresentava ali com um BMW em segunda mão depois de ter deixado mulher e cinco filhos para lá da fronteira de Trieste, ajudava a cortar o presunto de Chaves em tiras tão finas que se podia ver o sol, ladeadas por uma lasca branca que abria o apetite por pouca fome que houvesse. Não era o caso.
Tudo na mesa em meia dúzia de travessas e abriu-se o bical, gelado como recomendava o menu e que satisfez plenamente os exigentes bebedores, melhor que o asti que se seguiu, doce demais para estes pratos picantes e salgados, mas que acompanhou muito bem as alheiras de Mirandela quando saltaram crocantes da frigideira para o prato e se trouxe a última garrafa do bical da porta do frigorifico.
Só então me sentei no topo da mesa desemborcando a cadeira de plástico que me era destinada, para saborear o prazer da degustação lusitana perante a toalha aberta que pouco a pouco se foi esvaziando até ás migalhas, com a aprovação, por fora e por dentro, da acalorada tertúlia.
Juntamos o malhão e o vira ao sole mio do ano anterior e quase me senti o rei de Portugal, plastificado naquela cadeira de cor azul do martini quando limpa a mesa de comestíveis se acabou no espumante.
Ninguém se lembrou mais do salame de Budapeste, em boa verdade, também porque do enchido português não restou naco nem pele para fazer um caldo verde.
Quando se arrumou tudo, se fechou a porta do bar de tavolla freda e se foi embora o esloveno no BMW em segunda mão, com o discernimento toldado pelas borbulhas do espumante, ainda disse á Giovanna, não sejas louca, não vás para a Eslovénia atrás dele que a mulher tira-te a pele!
E chamando o elevador fui para casa, no quarto andar, já os meus netos clamavam pela minha presença para lhes contar uma história antes de adormecer. Inventei uma história com a Sissi, a imperatriz.
Mas depois sonhei com Budapeste. Hei-de lá ir sim senhor! Génova, Agosto,2010