BATALHA BUSSACO-3ª INV-FESTA ALMAS-1
Peter
A FESTA DAS ALMAS
Passam em Setembro duzentos anos sobre a batalha do Buçaco tradicionalmente comemorada a 27 com o nome local de Festa das Almas. Eu digo Festa das Almas porque era assim chamada desde a minha meninice e acrescento festa do povo, porque se das guerras que se travaram em Portugal se pode retirar rudeza e sacrifício para a gente que as viveu, a das invasões francesas foi a que mais pesou, a mais cruel e sofrida, a que mais sacrifício exigiu ás populações nos palcos onde decorreu mas também, mercê de inúmeras consequências, ao país inteiro quando o cidadão, já escravizado e vitima do sofrimento infligido pelo exército invasor, teve de suportar nos anos seguintes o peso de amigos ingleses chefiados por Beresford , um tiranete apostado em deixar apenas o esqueleto da débil nação que se tinham proposto ajudar. Para não falar da pitoresca monarquia, a banhos no Brasil!!!!!
Talvez esse seja o principal motivo porque a festa, rija e comemorada, perdurou na memória colectiva com grande força até aos dias de hoje e seja participada e sentida em directo pelas recordações geracionais chegadas ao presente pela tradição familiar, tradição que se mantém viva em muitos corações, sobretudo de quem descende dessas memórias orais dos baús das invasões desde Junot a Massena.
Era pois Festa das Almas que se chamava e chama á romaria que leva ao largo do Obelisco milhares de pessoas, observadores atentos das manobras militares que cada vez são mais reduzidas, mas que eram de certa grandiosidade á relativamente pouco tempo e plenas de solenidades e exaltação patriótica.
Ao tempo da batalha existia adiante da Porta da Rainha a capela do Encarnadouro, modesto edifício mandado construir por Luís Rodrigues de Santa Cristina da Serra e é provável, segundo se pode depreender de alguns relatos, que lhe estivessem associadas duas ou três casas formando um pequeno lugar. Ora esta capela serviu na altura de hospital de campanha ou hospital de sangue e foi ali que se prestaram os primeiros socorros aos feridos da contenda com a singularidade dos relatos apontarem o facto de terem sido assistidos muitos franceses. Das Almas do Encarnadouro derivou pois o nome, festa mais justificada ainda pelo facto de ali ter sido para muitos, um purgatório de almas em transição final.
São duzentos os anos passados, mas dando-me ao pequeno exercício de fazer contas muito simples chego á hipótese de supor que o meu trisavô paterno, tendeiro ou almocreve na Mealhada, tenha assistido á batalha ou tenha presenciado alguns dos episódios desses dias terríveis durante as suas andanças pela serra e pelas redondezas, associando medo á curiosidade ou curiosidade ao seu trabalho de caminhante perpetuo pela via profissional. Não deixa de ser uma hipótese bem provável se alicerçada no calculo das probabilidades, que coloca bem perto a realidade. Realidade longínqua pela contabilidade humana, há um instante no contexto universal.
Desta participação colectiva vem o cordão umbilical que suporta a curiosidade absorvente sobre o fenómeno em cada ano de lembrança, quer do lado litoral, quer das minhas costelas serranas dos vizinhos municípios de Penacova ou Mortágua, palcos privilegiados dos acontecimentos. De resto a batalha, em relação á divisão administrativa, é um todo indistinto que engloba os confinantes com a serra do Buçaco e não só.
Meu pai tinha o mesmo pensamento, pois a festa para ele era um evento mais ou menos sagrado e sempre que por ali passávamos nas vésperas natalícias a caminho da sua aldeia natal, fazia questão de sublinhar a importância da capela da Senhora da Vitória como hospital de sangue e foi assim que desde tenra idade fiquei ligado á batalha , pois o nosso caminho seguia acima de Sula, Moura, do Cerquedo e Santo António do Cântaro, cenários centrais do desenrolar dos conflitos, locais que vim a conhecer como as mãos, quer ao nível dos cumes, das encostas , dos sopés, das escarpas ou das ribeiras que escorrem daqui e dali para o Mondego ou para o Vouga.
No dia da festa, no fim do verão portanto, subíamos do Luso ao lado do cinema, ao campo da bola, á costa do sol, cruzávamos as portas da rainha e continuávamos rente ao muro da cerca até ao cômoro acima da esplanada onde decorriam os festejos. Ali nos sentávamos com a cesta do farnel olhando o obelisco e vendo a colorida cerimónia donde sobressaía o patriótico e enaltecido discurso dum adido militar e o desfile militar das tropas anglo-lusas, os lusos de sorrobeco cinzento de pardo luzimento e qualidade, os anglo em coloridas e garbosas fardas vermelhas debruadas a branco e azul, na pompa e orgulho de representantes de sua majestade. E a charanga, debitando marchas militares adequadas acompanhava com música.
Não percebia porque é que as tropas eram sempre anglo-lusas, nunca luso-anglas como me parecia presumir pela gramática, estávamos na Lusitânia, não na anglotânia , o herói Viriato tinha expulso os romanos , era o maior de todos, o Condestável, beato e santo, o Rei de Castela e fazia-me assim confusão o primeiro lugar dos anglos ante o próprio prejuízo. Só mais tarde vim a compreender que prevalecia a lei do mais forte, nos países como nas famílias, como nos homens, como nos animais, como na vida. Daí a subserviência, pendurada na trave da fraqueza, ou na inferioridade das cócoras perante a sobranceria luxuosa dos bifeiros de além Mancha.
Só com o Benfica e depois o Porto, e isso foi muito mais tarde, é que a Lusitânia deu um ar da sua graça com golos que deixaram embasbacados os Tottenames e Liverpuis, mas isso, foi improviso aproveitado para negócios e grandezas que tão depressa nos exaltaram as gargantas como nos levaram ao esvaziamento dos cofres públicos em campos de futebóis e fúteis gargarejos de importância insustentada ou de miséria escondida. Tanto faz!!!
Seja como for, naqueles tempos havia sempre presente um pelotão de escoceses vestidos de saias de xadrez que depois desfilavam tocando bombos e gaitas de foles no terreiro do obelisco e davam um concerto nocturno , isto muito antes da existência da televisão e dos tatoos militares que foram moda posterior em muitos recintos desportivos. E também os passos lentos e cerimoniosos das fardas napoleónicas e lusas no recinto circular ou no regresso da charola á capela da Vitória faziam o encantamento geral, tal como o pesado bater dos cascos da cavalaria nas pedras do caminho metiam medo, não raro sob o rufo de charamelas e timbales manejados por cima do lombo das cavalgaduras pela teatralidade dos executantes.
Á uma, duas da tarde, saia a procissão acompanhada pelo vistoso aparato militar enquanto troavam os velhos canhões de 1810 com tiros de pólvora seca a ribombar quilómetros em redor.
Finalmente nas Portas de Sula distribuía-se rancho a quem queria comer, macarrão, grão de bico e carne de porco, tudo entulhado como massa de reboco, mas nós, os das redondezas, de comum transportávamos farnéis em cestos de vime e sentávamo-nos pela mata a saborear as preciosidades caseiras, algum velho capão que fora quase família, assado no forno a lenha.
Só o por do sol abria as portas do regresso com um cartucho de nozes na mão e, ainda que ignorantes da completa dramaturgia acabada de ver, voltávamos satisfeitos com a parte que a cada um cabia, afinal a verdade do individuo no grande palco onde se ensaia a vida na sua imponderável globalidade. FS
Luso,Janeiro,2001(200anosdaBatalha)) Buçaco.blogs.sapo.pt