A GUERRA DOS MONGES
A manhã de 27 foi para os resignados monges de Santa Cruz do Bussaco de delapidação total das regras conventuais. Instalados na sua maioria no refeitório situado no extremo norte do Convento, os frades levantaram-se cedo, mal o general, eram quatro horas da manhã, saía com o seu séquito de ajudantes a demandar pela serra a disposição do exército e a perscrutar o disperso bivaque francês pelo longo binóculo que lhe chegava o adjunto a cada solicitação. Já os frades reunidos á volta da cruz central do dito refeitório, toda ela forrada a cortiça, iniciam as demoradas matinas com cantos e sacrifícios onde a autoflagelação era coisa comum. É uma sala grande a das comidas, mais comprida que larga e mais alta que as oficinas, as celas ou a própria livraria. Humilde, também forrada a cortiça tal como a cruz, janelas e portas, é ali que os monges se reunem á volta duma mesa de madeira, comprida, frugal e pobre.
Ao mesmo tempo que dão alívio ao estômago, conforme vão acabando as suas refeições, alguns deles encostam o corpo á grande cruz no meio da sala, abrem os braços como crucificados numa figuração de Cristo, o seu orago, e assim permanecem em silêncio ou a chicoterar-se a si próprios expiando deste modo o pecado de ter comido. Em muitos dias comem no chão ajoelhados aos pares ou em trios. Colocam sobre a cabeça coroas de espinhos, vendam os olhos com largas faixas de pano preto, sorvem de mordaças que seguram na boca, entre os lábios, mistelas envinagradas e azedas. Não raro, em muitas ocasiões, carregam pesadas cruzes de madeira ou colocam sobre o dorso uma pesada albarda de asino, expiando desta estranha forma as culpas e os pecados cometidos.
Mesmo nestes dias de bulício militar, mais ou menos escondidos dos olhares curiosos de oficiais que passam oriundos das celas ocupadas, procuram mortificar-se o melhor, ou o pior que podem , sendo o sacrifício mais comum chicotadas nas lombares até a um rasgo de sangue assomar na sua vermelhidão. Então cessam a cerimónia, tapam a ferida com o surrobeco do hábito e vão à sua vida. Regra geral desde a chegada do general tem-se moderado nos tormentos destes alívios de alma e a oração tem sido a principal mais valia obtida em favor do céu. O coro diário e o silêncio, contrastando com a balbúrdia instalada em toda a cerca, são onde passam o resto do tempo da penitência.
Ás quatro da manhã de 27 enxerga-se mal. Na prática é noite ainda. Acendem círios e velas trazidas da dispensa onde conservavam grande quantidade e ao passarem lentamente em frente de portas e janelas parecem sombras fantasmagóricas denunciando um culto iniciático macabro sob o esticado capuz de burel da vestimenta, ritmado no intervalo de cada passagem breve.
É pelo romper estrondoso do silêncio habitual no ermitério que dão conta da estranheza da manhã. Ainda que de longe, chegam ecos, sons dum outro mundo que lhes é diferente mas não indiferente, até aromas, enviados pela ligeireza duma brisa que lhes fere a pureza habitual dos odores da solidão cujos bálsamos, oriundos da própria natureza em sopros leves de brisa ou ventanias medonhas, conhecem bem. Hoje, quando o alvor da manhã
clarear em definitivo ,talvez bruscos e incómodos, os ruídos hão-de aumentar, os sons bailarão de direcção em direcção e nas salas humildes forradas a cortiça penetrarão o medo e as vibrações assustadoras do troar dos canhões juntamente com o cheiro fresco da pólvora que inundará as redondezas do mosteiro. È o que presumidamente pensarão estes eremitas, crentes ingénuos à medida do seu tempo, mas familiarizados com um mundo de injustiças, de violência e de guerras que conhecem bem. Permanecem um ano no refúgio para curar feridas destes desmandos mundanos, frequentemente dos seus próprios erros e exageros, na esperança dum perdão o mais tarde possível. No fim do tempo , cumpridas celas e ermo voltarão supostamente limpos e reconfortados aos malefícios da vida , depois desta limpeza intensiva dos problemas da alma.
Acabam orações e sacrifícios da fraca refeição e reúnem-se na igreja, o centro físico e coração do mosteiro. È um templo pequeno, cruciforme, humilde como as regras dos descalços e fechado por inteiro no interior do convento, envolvido em toda a volta pelos corredores das minúsculas celas. Não são todas assim todas as igrejas dos Descalços, mas esta é das primeiras a assumir uma arquitectura fidelizada depois da mais famosa de todas, em Batuecas nos confins de Salamanca.
Não há riquezas à vista, banido o ouro e a prata o luxo passa pelo altar mor com um Cristo crucificado gozando das companhias laterais de José , o carpinteiro, e Santa Teresa. Ao fundo e separando a igreja do coro de dois degraus, um pitoresco presépio reúne muitos figurantes à volta da manjedoura e do outro lado, em frente, olha embevecida a imagem discreta da Srª do Carmo. De realce, dum e doutro lado do altar, estão ainda duas figuras originárias dum desconhecido artista italiano, as figuras em barro de Madalena e do apóstolo Pedro. Talvez o que de mais rico possui o templo, não pelo valor intrínseco do material, mas pela expressão realista e sofredora dos actores representados. Pedro, a trair o seu mestre, Madalena, ainda jovem, expressando constrangido o fim dum amor divino. Resignada, tal como a figura barroca da Senhora do Leite numa tela datada de 1664 da autoria de Josefa de Óbidos e pendurada á direita, junto ao coro. È ali, sob o olhar materno dos leitosos seios que os frades se juntam a adivinhar o dia.
Enquanto isto, Wellington faz um périplo á volta das suas tropas estacionadas ao longo do cume por onde corre um manto de nevoeiro matinal. Adivinhar o que se passa em baixo é a aposta mais certeira, além da tentativa de discernir entre o silêncio algo que seja diferente do fundo costumado. Sessenta mil homens armados para lá do horizonte visível falam sem dizer nada. Para lá dos sons, o ar, as ondas de calor e frio, não as de rádio que ainda não estavam descobertas, propagavam-se a instantes, o cheiro impregnava-se de cambiantes estranhos, alguns mesmo prenúncios vazios da ânsia e do medo espalhados em redor ou no silêncio dos homens esperando. A passarada, ainda que proibida por bula do papa Urbano, habita as frondosas árvores dentro da Cerca , mas também essa está calada e os galos madrugadores, ainda que o pudessem fazer, foram cozinhados por tanta gente com fome.
A expectativa é grande, o receio também, a tensão agiganta-se com o madrugar da noite. Os sinais, para militares experientes são reconhecíveis, mas não o são assim familiares para o recruta português saído da reorganização de Beresford , que pela primeira vez vai demonstrar em combate a sua capacidade e valor, uma estreia tão imponderável como absoluta que faz tremer o comando inglês como varas verdes. Vai pertencer a estes homens mal vestidos, mal armados e mal calçados, a expensas do governo inglês, o pendor dos resultados, daí as preocupações do lado britânico.
A manhã rompe dificilmente a neblina cerrada que se prolonga desde o nascer do sol impondo segredo montanha acima não se sabe por quanto tempo. Veremos que há-de descer ao contrário lentamente, primeiro rompida pelo sol nas partes altas, depois mais rapidamente a mostrar o conteúdo total da receosa paisagem liberta de sombras e assombrações, substituída dum momento por uma vaga de soldados que hão-de surgir prontos e escanhoados a trepar a montanha.
Para o comandante, que espera o desenrolar da acção no seu posto de comando, a batalha chega assim inesperadamente. Não faz parte de qualquer estratégia previamente concebida nem de planos arquitectados com objectivo e pormenores. A luta, se acabar por acontecer, é mais fruto do acaso que de outra coisa qualquer mas é evidente que esta situação acidentalmente vantajosa o obriga na prática a receber o corpo imperial de armas em punho, tão grandes são os trunfos que a sorte, como numa mesa de pocker, lhe coloca nas mãos. Observa, corrige, encoraja e aguarda confiante o levantar do dia quando surgem das profundezas dos vales que vão do Cerquedo à ribeira de Aveledo e ao rio Mondego os comandados de Reynier.