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______BUÇACO______

TEXTOS ,SUBSÍDIOS, APOIO

______BUÇACO______

TEXTOS ,SUBSÍDIOS, APOIO

11
Mai10

BATALHA BUSSACO-3ª INV-A DEFESA-5


Peter

 

 

 A DEFESA EM LINHA

 

 Como deixamos dito em Almeida, Arthur Wellesley, o comandante do exército anglo luso, foi recuando das posições assumidas desde Celorico, antecipando pela frente os movimentos do invasor á medida que lhe ia adivinhando as intenções e o rumo. Retirando os seus efectivos pela estrada da Beira, esperou que os franceses definissem o caminho com a intenção de os atrasar na sua caminhada até ás Linhas de Torres, cujas obras de defesa, é uma hipótese, não estariam ainda totalmente concluídas e para que isso acontecesse era preciso ganhar algum tempo. No dia 20 deixou o convento de Lorvão onde pernoitou e dirigiu-se para o Buçaco onde se instalou, deixando ás milícias de Trant a tarefa de se ocupar a retardar o mais possível a marcha dos franceses que o seguiam a pouca distância.

Aqui devemos fazer uma pausa para explicar que estas milícias portuguesas comandadas por um oficial britânico, Trant, não eram um bando de guerrilheiros sem regra nem função mas sim as milícias municipais ensaiadas por D. Sancho I e criadas a seguir por D. Sancho II, tal como as Ordenanças que foram fundadas por D. Dinis e existiram sempre na nação portuguesa em tempo de conflitos. As primeiras, organizadas em terços, prontas para acudir a uma invasão pelas fronteiras, as segundas próprias das fortalezas para resolver questões internas. Ambas organizando-se apenas na altura das necessidades, ambas também fontes de fornecimento de recrutas para o exército regular desde que começou a existir em permanência, a partir da guerra da restauração.

Quer o exército permanente que foi desmobilizado por ordem de Napoleão aquando da tomada de Lisboa por Junot, quer estas estruturas independentes mas paralelas, foram reorganizadas por William Beresford  a partir de 1808 e vieram a constituir as forças  portuguesas que expulsaram os franceses. Oriundos destas estruturas foram o Corpo Académico Militar de Coimbra, Os Voluntários do Comércio de Lisboa e do Porto, os voluntários de Portalegre, Beja, Coimbra, ou a Leal Legião Lusitana.

Quando Massena no dia 18 de Setembro chegou a Viseu encontrou a cidade deserta, abandonada, incapaz de satisfazer as necessidades de abastecimento dum grande exército em marcha. Eram mais de sessenta mil efectivos nos três corpos e a busca de alimentos eram cada vez mais difíceis e demoradas pois a população, saindo da cidade,  ou seguiu na peugada dos anglo-lusos ou acoitou-se com alguns haveres pelos montes e matas em redor e embora toda a máquina de guerra marchasse agora ordeira e desejosa por alcançar as férteis planícies vizinhas de Lisboa, a lentidão deste comboio era grande e pouco ajustada ás exigências da conquista, um contraste abissal com a marcha de Junot durante a primeira invasão que, partindo de Castelo Branco por péssimos caminhos ultrapassou todos os obstáculos a tempo de chegar a Sacavém  pouco depois das  últimas naus da corte deixarem o Cais de Belém rumo ao  Brasil.

Desta vez porém a lentidão ultrapassou o razoável, talvez pelas dificuldades do terreno, pelas investidas das milícias, por animosidades entre os oficiais, talvez até por, segundo Santana Dionísio, o comandante beneficiar da companhia de uma garbosa amazona que o acompanhava desde Salamanca sob o disfarce dum imberbe oficial….

Mandou avançar Reynier pela via de Mangualde e Carregal  e os  corpos de Ney e de Junot por Tondela e Mortágua .

A serra do Bussaco  começa a surgir aos franceses como um grande obstáculo pouco depois do rio Dão, mas de facto não é grande a montanha, nem alta nem sequer larga, mas é robusta e comprida nos seus vinte quilómetros de cumeeira, as suas encostas íngremes levantam-se de ravinas profundas, ásperas, numa constante subida entremeada de valeiros e cabeços que só um esforço físico violento poder superar. E vista recortada num pôr de sol escarlate que desaparece atrás do cume aninhando-se no suposto oceano, dá a ilusão dum monstro comprido como se um gigantesco sáurio ali se tivesse esticado a sucumbir, fossilizando então. Mas nada disso é, embora se pesquisem e encontrem pequenas trilobotes do Silúrico a serra nada tem de dinossáurico, estende-se preguiçosamente entre o rio Mondego em Penacova, até á Portela de Oliveira e Santo António do Cântaro, dois colos de passagem, depois até á Cruz Alta, o seu ponto mais elevado e continuando a noroeste desce então pelos moinhos de Sula e Águia até ao desfiladeiro em Algeriz no vale do rio da Serra ou de Vila Nova. Note-se que em tempos recuados, foi conhecida por Alcoba pois a vertente caramuleira do oeste e sul identificou-se assim em épocas remotas até aos confins do Bussaco.

Por estes sítios e termos, temos aldeias e lugares que ficaram registadas nos escritos dos contendores e são assim adereços do evento, quer em escritos ingleses, quer franceses. Vale de Açores, Lourinha, Alcordal, Vale de Vide, Cerdeira, Moura, Sula, Carvalho, Coiço, Gondolim, Algeriz, Monte Novo, Santo António do Cântaro, Palheiros, Botão, Palmazes, Portela de Oliveira, entre outros.

Foi ao longo da estreita cumeeira que tem cerca de vinte quilómetros de extensão que o general Wellington postou o exército anglo-luso decidido a opor-se ao inimigo. A posição defensiva era excelente e Massena, não propriamente um amador das coisas da guerra, incompreensivelmente encurralou o seu exército frente a uma muralha natural impossível de escarpar. Inexpugnável, diriam depois alguns dos seus oficiais, entre eles os próprios comandantes dos seus exércitos que chegados a 26 pouco depois do meio-dia, a não quiseram atacar sem a palavra do marechal que chegou quase de noite. O próprio Napoleão, quando mais tarde escreveu sobre o Bussaco da prisão em Santa Helena diria: ‘ se a reputação de Massena acabou no Bussaco, é apenas á doença que podemos atribuir essa súbita desgraça. Não conseguindo montar a cavalo, nem ver pelos seus próprios olhos o que se passava, ele já não era ele mesmo… se o fosse, nem atacaria as linhas inexpugnáveis do Bussaco nem teria deixado Wellington acolher-se ás linhas de Torres Vedras…’

De tão privilegiadas linhas defensivas esperaram os anglo-lusos tirar o melhor proveito, pois Wellesley depressa percebeu as dificuldades que esperavam o atacante, assim conseguisse aliar a estas perfeitas condições a coesão das forças, a confiança das tropas, a disciplina. Todos os combatentes, quer ingleses, quer portugueses, eram enquadrados por generais britânicos, pois se havia confiança na bravura dos soldados ingleses, outro tanto não tinha sido ainda demonstrado pela parte portuguesa, constituída por recrutas alistados á pouco tempo, intensamente preparados sob a direcção de Beresford mas sem qualquer experiência de combate. Era imperioso que a hierarquia funcionasse e que a par da posição morfológica positiva o comportamento fosse firme, rígido e corajoso. De mão beijada, tal como acontecera a Massena com a explosão de Almeida, surgia agora ao inglês Wellington a oportunidade única de, mercê duma incompreensível análise do inimigo, o levar de vencida.

Foi ao longo da estrada construída entre os dois extremos da serra que o duque montou a estratégia, preparada para receber o inimigo em qualquer ponto e com o sentido de, para qualquer ponto por onde o inimigo tentasse atacar, movimentar rapidamente reforços e ajuda, uma mobilidade essencial que funcionou no embate de Reynier.

Entre o Ninho da Àguia, a noroeste, a Cruz Alta e a Livraria do Mondego a sudeste, a coberto do reconhecimento inimigo colocou os efectivos. Os primeiros, na confluência dos rios Alva e Mondego eram constituídos pela cavalaria portuguesa, pelo corpo de Hill postado entre o  Coiço, Gondelim, Casal e Palmazes  e depois a Senhora do Monte Alto ocupada pela Leal Legião Portuguesa e a brigada portuguesa Campbell da divisão Picton até ao cruzamento da Portela de Oliveira. Entre esta Portela e a de Santo António do Cântaro, dispunha-se em linha a Divisão Leith, Seguiam-se as Divisões Picton e Spencer ocupando as alturas da serra até ao Cerquedo. Atrás destas estabeleceu o seu posto de comando pouco acima das posições de artilharia que defendiam a estrada de Lisboa. Para a sua esquerda, já na direcção da Moura e Sula, as Divisões Crawford e Bercley, a brigada portuguesa PacK e a brigada Colleman fechavam o caminho a quem descia para o Luso e Mealhada depois  do acesso ao Convento, em cujo muro foram feitas algumas destruições, como ameias defensivas.

Para terminar este longo corredor até ao Ninho da Águia, nos cabeços sobranceiros ao lugar do Milijioso, postava-se a divisão alemã no lugar de Monte Novo, seguida de parte da brigada Campbell. Finalmente perto da Mealhada estacionava a cavalaria inglesa e Trant com as milícias, este com o encargo de patrulhar a via que de Mortágua rompia pelo Sardão para Boialvo e Avelãs.

Num breve resumo que mesmo assim se torna fastidioso para o leitor, aqui fica o dispositivo de defesa estabelecido por Lord Wellington para a defesa do Buçaco.

Deve ainda acrescentar-se que o comandante supremo das forças, William Beresford, o homem que havia organizado e preparado as forças portuguesas, instalou o seu quartel general na vizinha aldeia da Lameira de Sª Eufémia mas só a 27, depois dos combates, pernoitaria na livraria do convento.

Luso, Maio, 2010 FS (200 anos da Batalha)

24
Mar10

BATALHA BUSSACO-3ª INV -FRANCISCO-4


Peter

 

  

FRANCISCO E O GENERAL  ARTHUR

 

  Francisco nasceu no Cerquedo em 1798 filho duma numerosa família de pequenos agricultores de subsistência nas abas nordestes da serra do Bussaco. Criado entre dificuldades domésticas e uma mãe repartida por muitos, repartiu ele próprio a meninice entre os gadanhos paternos e o pastoreio do planalto, mas frente aos muros da cerca  dos frades onde terminava muitas vezes a caminhada, deixava que os animais se encostassem ao sol tentador que se entornava nas pedras e sentava-se a pensar no misterioso mundo daquele interior ignorado e proibido á sua pobre conjectura. Um dia subiu o muro, escancarou-se sobre as pedras nuas e mal assentes em massa de lama e palha e quando regressou disse aos progenitores que gostaria de servir no Convento. Aconteceu que por aqueles dias Frei Bernardo do Espírito Santo, também conhecido entre os irmãos como o Frade das Coisas Terrenas  , andou por ali á procura de moços para as hortas e calhou simpatizar com a figura pequena e risonha do frágil Francisco. Insistiu com os pais e levou-o consigo para moço da horta e vinha, primeiro á experiência, depois, passado um mês, já rendido á humilde docilidade do garoto, voltou para sublinhar a satisfação do mosteiro e fazer, por contrato de palavra, um contrato de trabalho.

Bonacheirão, o monge deixou satisfeitos pai e mãe, uma boca a menos e a garantia duma carreira futura ali ás portas de casa era afinal tudo quanto podiam desejar e agradeceram ao frade a boa nova por alma de todos os santos do ermo e redondezas. Estava-se no Outono de 1809 e o rapaz já passou o natal dentro da Cerca entre os irmãos, aprendendo a humilde e penitente tarefa de louvar o nascimento do Senhor no pobre isolamento da congregação.

De facto o Francisco era educado, carinhoso e maleável como um pedaço de barro aos artifícios dos devotos penitentes e tanto lhes agradavam as boas maneiras e a prontidão de atitudes que pouco tempo depois as suas faltas, como a sua ignorância, eram coisas tratadas como a pureza dos anjos nas delicadezas do céu. Ensinaram o garoto, das hortas á cozinha, ao refeitório, á livraria, iniciaram-no na leitura e no missal e arranjaram-lhe até um pequeno cubículo por quarto encostado á hospedaria, um sítio silencioso e recatado, como prova do seu reconhecimento e familiaridade. E o miúdo era, como se diz vulgarmente, pau para toda a colher e mercê da sua simpatia e disponibilidade, tornou-se um ai Jesus percorrido entre toda a comunidade, obrigada por votos e intenções ao silêncio e á contemplação. Com anjos porém, era diferente!

 Foi por estes motivos que no dia 21 de Outubro pelas nove horas da manhã o Francisco foi chamado ao Prelado Maior, Frei Domingues de Deus, a fim de o acompanhar na recepção a Artur Wellesley na portaria do Convento. Pelas oito, havia já chegado, vindo de Lorvão, o quartel mestre general, hoje para obviar o assunto diríamos o staff, mas custava ao bom do frade dirigir-se sozinho ao encontro do poder. Não que não tivesse já visto generais, comandantes, navegadores ou reis, mas retirado dessa vida mundana como estava por razões do desprendimento das coisas terrenas, custava-lhe repartir o espaço interior da sua imolação com o que há tanto tempo deixara. Muito menos só. Achou por bem levar uma alavanca, como que uma bengala ou consolação e encontrou na presença do angélico garoto, talvez a figura com que Miguel Ângelo, Giotto ou Rafael pintaram o renascimento. Ciente ou não das obras referidas, Frei Domingues encontrou ali o aconchego e refúgio que perdera da vida e o melhor acompanhamento para ultrapassar a situação enquanto os irmãos, depois da primeira hora de oração matinal, dispersaram para a solene rotina da regra conventual. Por pouco tempo.

O Francisco, admirado com o garbo dos oficiais que iam chegando em luzidios amarelos e com a fruta cor dos enfeites que adornavam as bestas a todo o comprimento até aos rabos penteados, abria os olhos de espanto, mas encostado á veste protectora do prelado, mantinha-se em cerimonioso silêncio, se bem que lhe apetecesse saltar pelo átrio da entrada e segurar com a própria mão os arreios pretos e castanhos dos animais e dar duas corridas de contentamento e liberdade por sua conta e risco á volta deles. Conteve-se porém, entre o dito espanto e o medo e o olhar benevolente do geral.

Quando por fim o prelado informou o general do quarto que lhe reservara, o melhor da hospedaria, limpo e pintado para receber com dignidade o ilustre hospede, foi ao Francisco que incumbiu de lho mostrar, porém o general não gostou do aposento, não só por ser no interior do claustro mas porque tinha apenas uma entrada. Acabou por escolher o quarto da portaria á esquerda do átrio, tinha duas portas e abria uma pequena janela para fora, o que lhe dava uma rápida visão sobre o terreiro da frente. E sobre uma oliveira nova, nascediça, cujo caule tanto dava para prender as rédeas da cavalgadura como para o próprio cavalo, num puxão mais atrevido, a levar atrás de si.

Foi para ali que alguns soldados da escolta despejaram as malas e depois as transportaram ás costas para o interior, após o próprio prelado o ter mandado lavar e enxugar á pressa, com fogo que mandou atear em duas taças grandes de latão bronzeado cheias de madeira bem seca, deixando depois o brasido a terminar a secagem. Foi dali que todas as manhãs os mesmos impedidos retiraram as malas para fora e as recolocaram de novo ao fim da tarde durante sete noites, tantas quantas as que Wellington pernoitou no Convento do Buçaco.

Pelo meio-dia já toda a cerca murada estava pejada de militares ingleses, entre os quais os oficiais que se aboletavam em quanto sítio abrigado acharam de melhor, desde o convento ás ermidas. A vida da clausura foi interrompida, os frades retornaram ao mosteiro, coisa que nunca tinha acontecido no ermitério desde 1628 e as suas próprias celas foram ocupadas pela oficialidade britânica. Apenas ao Prelado foi consentido, por uma questão de cortesia politica, manter o seu quarto habitual. E a Frei António dos Anjos porque ninguém quis ocupar a sua cela por estar entulhada de farrapos, cacaréus e ferro velho, relíquias que o bom do monge vinha amontoando á revelia do prior durante grande parte da contemplação.

O resto da jornada passou Wellesley a percorrer a serra e a organizar as defesas, obras que se prolongaram até 26. Mandou erguer uma paliçada frente á Porta de Sula, rasgar o muro entre esta e o planalto á maneira de o dotar de improvisadas ameias, abrir uma porta perto da Cruz Alta, aquela que existe actualmente e abrir um estradão militar entre este ponto e a portela de Oliveira por onde facilmente e a coberto do inimigo movimentasse os homens, como aconteceu. Mandou igualmente aplanar plataformas onde colocou as peças de artilharia, empenhando em todos estes preparativos não só militares como muitos civis recrutados em redor ou dos que caminhavam com o próprio exército e as milícias. Ao princípio da tarde de 24 mandou abrir a Porta da Rainha que se encontrava tapada com um muro de pedra e cal desde 1704, altura em que passou pelo Bussaco o rei D. Pedro II e o Arquiduque Carlos de Áustria. Esta porta havia sido construída em 1693 para dar passagem á Rainha de Inglaterra D. Catarina de Bragança, visita que não se veio a verificar e com medo de que aumentasse a devassidão intra muros com nova entrada, foi entaipada pela comunidade dos Descalços.

Desde a chegada dos militares, coisa nunca vista no ermitério, a vida da clausura foi interrompida, proibido o toque dos sinos do convento bem como das sinetas das ermidas durante a noite e abertas as portas á tropa, ficou a cerca aberta a toda a gente que, durante a permanência dos militares, entrou e saiu á vontade dentro dos muros. Os frades, desalojados dos seus humildes aposentos, dormiram pela igreja, pela livraria, pela sacristia, ou até na dispensa, onde os parcos haveres foram, por ordem do comandante em chefe, protegidos, a par do respeito devido ás suas próprias pessoas.

Acabaram por sair do Cenóbio apenas no dia 28, aconselhados pelo próprio Wellington a fazê-lo uma vez que abandonada a Mata, ficaria aberta á chegada dos franceses. Se bem que a 22 tivessem seguido para Coimbra alguns irmãos mais velhos e um carro carregado dos bens mais preciosos do mosteiro!

No fim, acabariam por ficar Frei Gerónimo do Sacramento, Frei António da Soledade , o irmão Inácio da Natividade pois ao pretenderem abandonar o mosteiro na noite de 28, ela era já cerrada e a chuva tão abundante que resolveram partir na manhã seguinte. Encostaram-se no chão a dois cantos na hospedaria e adormeceram. No pequeno cubículo, do lado de fora, o Francisco já tinha adormecido há muito tempo, nem deu pela chegada dos bons frades que em silêncio passaram para descansar no interior.

 Luso, Março.2010 ( 200 anos da Batalha)

 

02
Mar10

BATALHA BUSSACO-3ªINV-ALMEIDA-3


Peter

 

 

 

 ALMEIDA

 

 A história da batalha do Buçaco está contada e mais que recontada, não me cabe a mim ter a pretensão de fabricar novos modelos ou interpretações para que melhor se entendam os fenómenos pátrios e sobretudo humanos, porém, a duzentos anos do evento, atiça-me a curiosidade para uma descrição jornalística leve e acessível dos acontecimentos, texto despretensioso que seguindo uma linha coincidente com a realidade tal como nos é contada e transmitida, seja fácil, tanto na leitura como no assimilar pelos leitores para que em conjunto, quem escreve e quem lê, reflictam sobre o facto de a pátria ser feita de todos nós, daqueles que vivem e suportam os momentos difíceis e constroem, muitas vezes reconstroem, o que outros avaramente consomem.

Também hoje vivemos tempos conturbados de grande diferenciação entre nós, mas a história, como lição, tem em si própria a virtude de nos mostrar os erros cometidos e de nos permitir a volta a um destino como povo, se esse mesmo povo, por força dos laços biológicos, físicos, linguísticos e culturais for digno de destino próprio. É neste sentido e também com a pretensão de assinalar os dois centenários do evento que me proponho a reescreve-lo á nossa medida e limitado portanto á nossa geografia.

 A manhã de 26 de Agosto de 1810 nasceu de sol e o calor cedo começou a fustigar a pedra grossa da fortificação de Almeida, na Beira Alta. Feita para defesa da raia castelhana em tempos medievais, adaptou-se á época pouco sólida das invasões vindas de além Pirenéus e engrossou os muros com substancial arrogância e rigidez.

Á catorze dias que a guarnição defende heroicamente a praça-forte e as ajudas solicitadas ao exército anglo luso não surgem. Mesmo assim, depois do combate no Côa onde deixaram mortos, estão dispostos a continuar na defesa porfiada da vila, pesem as futuras dificuldades com os aprovisionamentos que se avizinham.

Ciudad Rodrigo caiu após 24 dias de cerco, Almeida vai no décimo quarto dia duma luta constante pela manutenção do baluarte beirão, o último obstáculo do caminho invasor. Em redor, Massena aquartelou os seus exércitos e entre ataques pontuais e algumas manobras de diversão aguarda a rendição da praça. É uma questão de tempo, pensa. Para lá dos bivaques, Trant e as suas milícias portuguesas ensaiam um combate de guerrilha contra os corpos napoleónicos sem resultados práticos e o grosso do exército luso-britânico comandado por Wellington afasta-se para os lados de Celorico, expectante entre vias da Beira Alta e Beira Baixa. É por uma delas que há-de caminhar o príncipe de Esseling nesta terceira tentativa de subjugar Portugal á vontade de Napoleão Bonaparte.

È então que subitamente, na vigilante calma da tarde quase crepuscular, sete horas, o inesperado acontece, um enorme estrondo faz ir pelos ares o paiol da pólvora situado no velho castelo medieval, onde se acoitam e juntam, em quantidade, armas, explosivos e munições. O mundo parou uns segundos no estrondo do rebentamento, mas á expansão do trovão que se arrasta por largos minutos junta-se depois a vida, gritos, vozes, ordens, correrias, enquanto voam pelo ar pedaços de material diverso entre pedras e telhas e destroços de edifícios. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu no fim da tarde quente enquanto o fogo irrompe de dentro das muralhas antigas com grande violência. Não se escutaram tiros dum lado nem do doutro, nem o canhão rugiu em vómitos de morte. O sossego da guerra, paradoxo, era o que reinava antes, talvez que o fim de Agosto não convidasse á luta imposta, a morosidade das soluções impusesse algum descanso, enquanto os homens, sabendo o que fazer e como fazê-lo, se aquartelavam em expectativa correctamente arquivada. Só minutos após a perplexidade dá lugar ao medo, o espanto á organização defensiva e o instinto, ao viver.

  Aos de dentro, logo se tornou claro face á destruição patente na muralha fortificada que a resistência se tornara impossível e a capitulação com honra passou a ser, após este trágico instantâneo, a única alternativa aos valorosos defensores deixando assim abertas as entradas beirãs aos invasores. Se o armazém rebentou por descuido, por mecha sobreaquecida pelos raios do sol da tarde, por mazela ou sabotagem dum introduzido francófono não foi esclarecido. Nunca o viria a ser. Mas como o que não tem remédio, diz a populum vox , remediado está , Massena  aproveitou de mão beijada a desgraça da praça ,negociou  com alguma honra para a destroçada guarnição e tomou posse ,como lhe convinha, da fortaleza dois dias depois, a 28.

Festejou o facto como vitória. Está gravada na Place D’Etoile, em Paris entre dezenas de batalhas, combates e escaramuças que teve o grande exército, mas esta, sem honra nem glória perante a história, porque de facto a não teve.

Instalado do lado de dentro por troca com os nossos, ali permaneceu o general alguns dias após o que, deixando uma pequena guarda na praça  prossegue  o seu caminho com  o objectivo de tomar essa praça maior  que trazia por incumbência imperial , a resistente e teimosa fortaleza lusitana,  auxiliada e empurrada pelos  ingleses, apostados numa estratégia de abandono e desertificação, uma politica de terra queimada  como mais tarde faria Kutuzov na Rússia, enclausurando os franceses na falta de estruturas e viveres e por fim nas amarguras do clima.   Por isso mesmo, quando mais tarde chegaram ás Linhas de Torres, o exército era seguido por grande parte das populações, uma multidão de maltrapilhos miseráveis, esfomeados, estropiados, doentes, uma turba que servia de tampão, muitas vezes a jeito, entre a retaguarda anglo lusa e a vanguarda francesa, a cavalaria de Montbrun.

Não teremos jeito, nem vocação, nem dinheiro para recriar realidades históricas na quimera do cinema mas não andaremos longe, corrigindo as dimensões á relatividade, de ver a população retratada fielmente em muitas das fitas para salas e televisão que reconstroem a marcha do imperador sobre Moscovo. Esta é uma parte que se não recorda muitas vezes nas evocações do fenómeno, mas que se lembra aqui como lição da dita história, pois foi parte inseparável do drama das invasões e da população que as viveu de forma presente e activa entre mortes, dores e resignado sofrimento.

Acalmadas as Praças de Ciudad Rodrigo e Almeida, Massena encaminhou-se então para Viseu. O 2º corpo de exército, do general Reynier, por Sabugal e Guarda onde chegou a 18 de Setembro. O 6º corpo, de Ney, passado o rio Coa seguiu por Alverca e o 8º corpo de Junot em direcção a Pinhel donde seguiu para Viseu.

A 18 de Setembro encontram-se estes dois corpos na cidade beirã completamente abandonada. O 2º corpo ocupava entretanto Mangualde, donde seguiu depois para o Carregal do Sal ao mesmo tempo que os 6º e 8º tomavam a estrada de Tondela e Santa Comba Dão, um percurso difícil e demorado por caminhos que algumas vezes tiveram de ser abertos a pá e pica para possibilitar a passagem das carroças e carroções da artilharia imperial. Sob a pressão de Trant e suas milícias que ajudavam a atrasar a marcha militar como aconteceu na passagem do rio Criz. Aqui, destruídas as pontes, coube aos sapadores franceses construir nova passagem, o que atrasou o avanço e formou longas filas ao longo dos caminhos.

No dia 23 de Setembro os frades carmelitas do Buçaco começaram a ouvir e distinguir para os lados de Mortágua bastante tiroteio e quando ao cair da tarde se deslocaram curiosos até á Porta de Sula , a entrada nordeste do convento , divisaram á distância vários focos de incêndios em toda a região presumindo pois a chegada dos soldados.

Na época, chegada a estrada a Vale de Açores em percurso comum, dividia-se então em duas, a real, chamada estrada de Lisboa, dirigia-se a Coimbra dobrando a crista do Buçaco por Santo António do Cântaro, Palheiros, Botão e Fornos, outra, mais recente, dirigia-se de Mortágua ao lugar da Moura e dali subia á pequena aldeia de Sula para depois descer na vertente litoral, passando cinquenta metros abaixo e á direita da Capela das Almas em direcção ao Luso e á Mealhada onde entroncava na estrada real Lisboa /Porto. Da chamada estrada de Lisboa saia ainda após Vale de Açores, um outro caminho em péssimo estado, a partir do pequeno lugar do Alcordal e em direcção á Portela de Oliveira, Figueira de Lorvão e Celas.

Era entre as duas primeiras vias que faziam vida cenobítica desde o tempo dos Filipes os Frades Carmelitas Descalços. Ali mantinham á século e meio um deserto onde expiavam pecados seus e do mundo e procuravam pela humildade e simplicidade de vida alcançar a perfeição dos céus.

Vamos deixar os exércitos nos respectivos percursos em direcção ao Bussaco e tentar penetrar, com a boa vontade do nosso já conhecido Frei Jerónimo do Sacramento, dentro dos muros  para chegar ao Convento.

Luso, Fev.2010 ,FS. (200 anos da Batalhada do Bussaco)

  

23
Fev10

BATALHA BUSSACO-3ªINV-ENCARNADOURO-2


Peter

 

A CAPELA DO ENCARNADOURO OU DAS ALMAS

 

Mandada construir por Luís Rodrigues, natural de Santa Cristina da Serra, freguesia de Espinho, do concelho de Mortágua, assistente no Convento dos Carmelitas do Bussaco, a Capela do Encarnadouro, conhecida igualmente por Capela das Almas, (também aparece como capela do Emcarradouro) entrou na história pátria por ali terem sido tratados inúmeros feridos da batalha com o apoio do exército e a bênção dos frades, sem distinção de cores ou credos, condição que os devotos eremitas impuseram a si e pediram  aos intervenientes nessa jornada trágica da nossa caminhada comum, agora, se optarmos por uma versão ligt do sucedido, diremos da história comum europeia, acontecimentos que vistos á luz actual do continente e do euro podem e devem ser tratados em perspectiva diversa daquela de então.

Era o assistente Luís Rodrigues um fervoroso crente que comungava dos desígnios humildes dos construtores do mosteiro porém, não despojado dos bens terrenos no concreto da existência, ficou-se pela assistência do braço secular e foi nessa condição que fez testamento, escrito por Manuel Lebre Teixeira, da Mealhada, formado em cânones e capitão mor das ordenanças do Couto de Aguim, no próprio Convento de Santa Cruz no dia 3 de Maio de 1783. Declara Luís Rodrigues perante o também presente tabelião Manuel José de Melo, do Couto da Vacariça, que dos dinheiros que lhe devem seus sobrinhos, duzentos e setenta e nove mil reis e uns centavos, sejam deixados á capela do Encarnadouro oitenta mil reis, para que do seu rendimento se tire o juro para aparelhar a estrutura e a colocar em ordem a dizer missa. Se tal não acontecer antes da sua morte, acrescenta o assistente, seja a verba aplicada em missas e legados diversos, que descreve a seguir e atribui aos sobrinhos. Assinam testamentário e testemunhas.

 Esta é uma das versões encontradas sobre a edificação da pequena ermida, a outra, uma variante que difere em pormenores, fica para uma segunda croniqueta sobre o assunto.

Em 1810, na altura das invasões, morto portanto o fundador da altaneira ermida, não passava a capela de algumas estruturas ainda inacabadas mas óptimas para o exército anglo-luso ali estabelecer um hospital de campanha ou hospital de sangue como ficou conhecido, hospital que contou com a ajuda e apoio activo dos frades, sem descriminação dos feridos, fossem dum ou doutro lado da contenda, como se disse. Para além disto, mesas operatórias onde cirurgiões cortavam a serrote e sangue frio membros inutilizados, existiam mais pela serra, uma outra junto á actual porta da Cruz Alta, na altura apenas um largo rasgão no muro, mandado fazer por Wellington nos preparativos para a defesa. Tanto os da serra como o nosso hospital de sangue faziam parte da estrutura da guerra e eram pouco mais que improvisados, mas desempenharam uma função essencial, pese a aparência cruel da medicina militar da época.

Quanto á acção dos monges, no dia 30 de Outubro, por exemplo, foram encontrados na estrada adiante da Moura, por Frei Gerónimo do Sacramento, interno de Santa Cruz, doze franceses em estado miserável de tal sorte que apenas um se podia levantar do chão e pôr de pé. Os outros, com pernas e braços partidos, feridas coaguladas, tiritando de frio e de dores, de sede e de fome, esperavam pela morte ou que algum paisano armado, dos muitos que andavam a monte no crime e na pilhagem, os encontrasse e lhes desse o golpe de misericórdia por conta da vingança.

Perante a universalidade do hábito, imploraram os desgraçados ao frade em gritos desesperados, por água, pão, consolo para as dores e alívio para sofrimentos. E o frade, como vinha fazendo nestes últimos dias de mais trabalho que preces, não se furtou ao auxilio, porém, face á recusa dos populares em prestar assistência a estas almas estrangeiras, predicou o amor ao próximo, apelou á exposta miséria dos infelizes, ao abandono e á morte sem salvação e finalmente ao pecado a recair com dureza nos corações empedernidos deles próprios. E como nada conseguisse da oratória viu-se obrigado a pegar em duas botelhas de água e a ir enche-las num riacho próximo de forma a consolar os miseráveis franceses.

Á custa do exemplo e do peso da consciência, conseguiu por fim que dois deles chegassem com mais umas quantas vasilhas de liquido e uma côdea de boroa com que prestaram os primeiros socorros aos moribundos soldados. Transportaram um deles, ainda que coxo mantinha-se de pé, para a aldeia e instalaram-no na palha duma loja térrea e enquanto tornou ao Convento buscar pão, peixe e vinho, rogou encarecido aos moradores da Moura que transportassem os restantes e os guardassem, o que, temerosos, acabaram por fazer.

Era dali ao Convento pouco menos que uma légua muito inclinada para um e outro lado do monte e quando voltou da parte da tarde com uma bolsa de alimentos, saciou os doentes, lavou algumas feridas, limpou-lhes a alma e instalou-os o melhor que conseguiu na dita loja, aconchegados na improvisada e comum enxerga onde permaneceram durante quatro dias entregues aos aldeões, altura em que os transportaram num carro de bois para o hospital de sangue, na Capela do Encarnadouro. Dois deles sobreviveram.

Quarenta e nove anos depois, ou seja em 1859, foi a capela comprada pela Câmara da Mealhada presidida por Adriano Batista Ferreira com o objectivo de a tirar do abandono a que estava votada e consolidar a romaria que as populações entretanto levavam a efeito relembrando os acontecimentos no domingo 27, quando o dia era o certo com a data, no domingo anterior, nos outros casos. Porém, pouco tempo depois Batista Ferreira deixou a presidência da autarquia sem levar por diante os seus intentos e coube á edilidade seguinte fazer o mesmo, isto é, nada, fenómeno que originou mais degradação e levou mais abandono ao já arruinado esboço de templo.

Foi em 1862 que Costa Cascais, oficial do exército, conseguiu impor ao Visconde de Sá da Bandeira o justo dever de se construir um monumento a perpetuar a memória da guerra peninsular e a partir de então teve inicio o processo da recuperação da velha ruína, só levada a cabo em 1871 quando era ministro da Guerra Fontes Pereira de Melo.  Em paralelo com o projecto do Obelisco, um monólito de seis metros em pedra lioz de Pêro Pinheiro, incumbiu o ministro ao então Tenente-coronel Costa Cascais a tarefa de tomar a ermida por cedência da Câmara, que tomasse posse dela e procedesse á sua reedificação. Quase total diremos, pois pouco mais restava da antiga estrutura que paredes de pé. Além de muitas memórias que não foram, tanto quanto se sabe, nem recolhidas, nem registadas.

 Foram assim recuperadas as paredes, colocada a abóbada, acrescentadas as casas da guarda, da sacristia e do fiel e paramentada com dignidade e dotada, depois da restauração, com o primitivo quadro de S. Miguel e Almas, o qual se achava no Luso á guarda de Vicente Duarte.

Foi benzida e abençoada sob o padroado de Nª Srª da Vitória e Almas no dia 27 de Setembro de 1876, dia da passagem do 66º aniversário da batalha.

Faz hoje parte, em conjunto com o Museu Militar e o Obelisco inaugurado no mesmo ano, do património militar e cívico relativo ás invasões francesas.

Anote-se finalmente que o Museu Militar do Buçaco, uma estrutura posterior, foi inaugurado em 17 de Setembro de 1910 pelo nosso último rei, D. Manuel II, oito dias antes da implantação da República.    FS

Luso, Janeiro 2010 (200 anos da batalha) Buçaco.blogs.sapo.pt

 

15
Jan10

BATALHA BUSSACO-3ª INV-FESTA ALMAS-1


Peter

 

A FESTA DAS ALMAS

 

 Passam em Setembro duzentos anos sobre a batalha do Buçaco tradicionalmente comemorada a 27 com o nome local de Festa das Almas. Eu digo Festa das Almas porque era assim chamada desde a minha meninice e acrescento festa do povo, porque se das guerras que se travaram em Portugal se pode retirar rudeza e sacrifício para a gente que as viveu, a das invasões francesas foi a que mais pesou, a mais cruel e sofrida, a que mais sacrifício exigiu ás populações nos palcos onde decorreu mas também, mercê de inúmeras consequências, ao país inteiro quando o cidadão, já escravizado e vitima do sofrimento infligido pelo exército invasor, teve de suportar nos anos seguintes o peso de amigos ingleses chefiados por Beresford , um tiranete apostado em deixar apenas o esqueleto da débil nação que se tinham proposto ajudar. Para não falar da pitoresca monarquia, a banhos no Brasil!!!!!

Talvez esse seja o principal motivo porque a festa, rija e comemorada, perdurou na memória colectiva com grande força até aos dias de hoje e seja participada e sentida em directo pelas recordações geracionais chegadas ao presente pela tradição familiar, tradição que se mantém viva em muitos corações, sobretudo de quem descende dessas memórias orais dos baús das invasões desde Junot a Massena.

Era pois Festa das Almas que se chamava e chama á romaria que leva ao largo do Obelisco milhares de pessoas, observadores atentos das manobras militares que cada vez são mais reduzidas, mas que eram de certa grandiosidade á relativamente pouco tempo e plenas de solenidades e exaltação patriótica.

Ao tempo da batalha existia adiante da Porta da Rainha a capela do Encarnadouro, modesto edifício mandado construir por Luís Rodrigues de Santa Cristina da Serra e é provável, segundo se pode depreender de alguns relatos, que lhe estivessem associadas duas ou três casas formando um pequeno lugar. Ora esta capela serviu na altura de hospital de campanha ou hospital de sangue e foi ali que se prestaram os primeiros socorros aos feridos da contenda com a singularidade dos relatos apontarem o facto de terem sido assistidos muitos franceses. Das Almas do Encarnadouro derivou pois o nome, festa mais justificada ainda pelo facto de ali ter sido para muitos, um purgatório de almas em transição final.

São duzentos os anos passados, mas dando-me ao pequeno exercício de fazer contas muito simples chego á hipótese de supor que o meu trisavô paterno, tendeiro ou almocreve na Mealhada, tenha assistido á batalha ou tenha presenciado alguns dos episódios desses dias terríveis durante as suas andanças pela serra e pelas redondezas, associando medo á curiosidade ou curiosidade ao seu trabalho de caminhante perpetuo pela via profissional. Não deixa de ser uma hipótese bem provável se alicerçada no calculo das probabilidades, que coloca bem perto a realidade. Realidade longínqua pela contabilidade humana, há um instante no contexto universal.

Desta participação colectiva vem o cordão umbilical que suporta a curiosidade absorvente sobre o fenómeno em cada ano de lembrança, quer do lado litoral, quer das minhas costelas serranas dos vizinhos municípios de Penacova ou Mortágua, palcos privilegiados dos acontecimentos. De resto a batalha, em relação á divisão administrativa, é um todo indistinto que engloba os confinantes com a serra do Buçaco e não só.

     Meu pai tinha o mesmo pensamento, pois a festa para ele era um evento mais ou menos sagrado e sempre que por ali passávamos nas vésperas natalícias a caminho da sua aldeia natal, fazia questão de sublinhar a importância da capela da Senhora da Vitória como hospital de sangue e foi  assim que desde tenra idade fiquei ligado á batalha , pois o nosso caminho seguia acima de Sula, Moura, do Cerquedo e Santo António do Cântaro, cenários centrais do desenrolar dos conflitos, locais  que vim a conhecer como as mãos, quer ao nível dos cumes, das encostas , dos sopés, das escarpas ou das ribeiras que escorrem daqui e dali para o Mondego ou para o Vouga.

No dia da festa, no fim do verão portanto, subíamos do Luso ao lado do cinema, ao campo da bola, á costa do sol, cruzávamos as portas da rainha e continuávamos rente ao muro da cerca até ao cômoro acima da esplanada onde decorriam os festejos. Ali nos sentávamos com a cesta do farnel olhando o obelisco e vendo a colorida cerimónia donde sobressaía o patriótico e enaltecido discurso dum adido militar e o desfile militar das tropas anglo-lusas, os lusos de sorrobeco cinzento de pardo luzimento e qualidade, os anglo em coloridas e garbosas fardas vermelhas debruadas a branco e azul, na pompa e orgulho de representantes de sua majestade. E a charanga, debitando marchas militares adequadas acompanhava com música.

Não percebia porque é que as tropas eram sempre anglo-lusas, nunca luso-anglas como me parecia presumir pela gramática, estávamos na Lusitânia, não na anglotânia , o herói Viriato tinha expulso os romanos , era o maior de todos, o Condestável, beato e santo, o Rei de Castela e fazia-me assim confusão o primeiro lugar dos anglos ante o próprio prejuízo. Só mais tarde vim a compreender que prevalecia a lei do mais forte, nos países como nas famílias, como nos homens, como nos animais, como na vida. Daí a subserviência, pendurada na trave da fraqueza, ou na inferioridade das cócoras perante a sobranceria luxuosa dos bifeiros de além Mancha.

Só com o Benfica e depois o Porto, e isso foi muito mais tarde, é que a Lusitânia deu um ar da sua graça com golos que deixaram embasbacados os Tottenames e Liverpuis, mas isso, foi improviso aproveitado para negócios e grandezas que tão depressa nos exaltaram as gargantas como nos levaram ao esvaziamento dos cofres públicos em campos de futebóis e fúteis gargarejos de importância insustentada ou de miséria escondida. Tanto faz!!!

Seja como for, naqueles tempos havia sempre presente um pelotão de escoceses vestidos de saias de xadrez que depois desfilavam tocando bombos e gaitas de foles no terreiro do obelisco e davam um concerto nocturno , isto muito antes da existência da televisão e dos tatoos militares que foram moda posterior em muitos recintos desportivos. E também os passos lentos e cerimoniosos das fardas napoleónicas e lusas no recinto circular ou no regresso da charola á capela da Vitória faziam o encantamento geral, tal como o pesado bater dos cascos da cavalaria nas pedras do caminho metiam medo, não raro sob o rufo de charamelas e timbales manejados por cima do lombo das cavalgaduras pela teatralidade dos executantes.

 Á uma, duas da tarde, saia a procissão acompanhada pelo vistoso aparato militar enquanto troavam os velhos canhões de 1810 com tiros de pólvora seca a ribombar quilómetros em redor.

Finalmente nas Portas de Sula distribuía-se rancho a quem queria comer, macarrão, grão de bico e carne de porco, tudo entulhado como massa de reboco, mas nós, os das redondezas, de comum transportávamos farnéis em cestos de vime e sentávamo-nos pela mata a saborear as preciosidades caseiras, algum velho capão que fora quase família, assado no forno a lenha.

Só o por do sol abria as portas do regresso com um cartucho de nozes na mão e, ainda que ignorantes da completa dramaturgia acabada de ver, voltávamos satisfeitos com a parte que a cada um cabia, afinal a verdade do individuo no grande palco onde se ensaia a vida na sua imponderável globalidade. FS

Luso,Janeiro,2001(200anosdaBatalha))                                   Buçaco.blogs.sapo.pt

14
Jan10

GABY DESLYS


Peter

 

GABY DESLYS,

AMORES DE REI NO BUÇACO

 

  A vida de Gaby Deslys passaria ao nosso lado, não fosse o facto de ter estado no Bussaco, em Agosto de 1910, acompanhando e de algum modo confortando os dias conturbados e difíceis do jovem rei D. Manuel II, a dois meses da implantação da República, naquele que foi na altura, um criticado devaneio amoroso do nosso último rei. È isso que pretendemos desenvolver em linguagem simples, conhecer em mais pormenor esse escondido evento do nosso património histórico local, numa tentativa de o aclarar perante uma opinião pública que, regra geral, o desconhece.

  Sem pretensões da exactidão duma aturada busca histórica, mas respeitando a pouca biografia acessível que se refere ao assunto, vamos começar por situar a acção no Verão de 1910, Julho e Agosto, apenas porque foi esta estadia, entre outras que se atribuem ao monarca, a mais prolongada e significativa.

  O rei deslocou-se a 12 de Julho para o Buçaco a conselho médico, e aqui se manteve até 23 de Agosto desse ano de 1910. Quarenta e dois dias.

   Era presidente do Conselho de Ministros Teixeira de Sousa que enviou para sua protecção 40 polícias de segurança, agentes da judiciária, uma força de infantaria e um destacamento de cavalaria. A 14, dois dias depois da chegada, correu em Lisboa o boato da eminência duma revolução, ao qual se juntou a notícia dum golpe de mão sobre o monarca, no Buçaco. Todas as forças ficaram de prevenção, porém a rebelião, tratava-se do levantamento de Machado Santos e Cândido dos Reis, foi adiada.

  Nestes últimos meses a situação política agravara-se de tal ordem que o reino era uma ruína, a desorganização total, Lisboa estava a ferro e fogo e todos os dias se aguardava o desencadear da revolta que milagrosamente tirasse o reino do lodaçal de corrupção e incompetência em que se tinha metido e da bancarrota que se avizinhava a passos largos. Iam passados mais de dois anos sobre o regicídio e a morte de D. Carlos e do príncipe Luis Filipe e continuava-se a nada esperar do herdeiro D. Manuel, preparado para oficial de marinha e não para reinar.

 A situação era de tal modo grave que, quando se pensou em arranjar casamento para o monarca, não se encontraram princesas disponíveis na Europa para vir morar para Portugal, um país tido como atrasado, ignorante, perigoso, ainda que o rei, apesar da sua juventude, fosse considerado um monarca instruído, afável, simpático, de bonita figura, que falava fluentemente o português, o inglês, o francês e o alemão.

   Ora foi neste ambiente difícil, até trágico e incógnito que  o rei , ou porque aproveitasse a estada ou porque a tenha  propositadamente provocado, reclamou a companhia  de Gaby Deslys,  uma bailarina da noite parisiense que, como iremos ver a seu tempo, tinha conhecido numa das suas passagens pela cidade luz. Não encontramos referência á data da chegada da diva ao Buçaco mas tudo indica que a permanência foi longa e o idílio prolongado.

Logo que chamada, a artista não se fez rogada e deixando Paris no sud express

desembarcou, eventualmente na estação da Pampilhosa, não há notícia e juntando-se ao monarca que se encontrava no Palace Hotel , instalou-se no Chalet de Santa  Teresa, edifício ainda hoje existente e que substituiu . aquando da construção do hotel, a ermida de Santa Teresa que ocupava aquele local. Ali permaneceu gozando da paixão que facilmente se apoderou de ambos. O rei tinha então 20 anos, a Deslys 27, a juventude por força e simplicidade, ambos de trato fácil e gentil, ela feita e experimentada numa vida dura mas cheia de êxitos, tudo de feição a que o romance, e um rei, seja mesmo dum pequeno e intragável país como Portugal, é sempre um rei, se apertasse e fosse por diante. De resto D. Manuel, como já se disse, era uma figura simpática, atraente, como se pode ver pelas fotografias existentes, e facilmente agradou á diva francesa, numa relação aliás, que, mercê da popularidade de que gozava a actriz no mundo artístico da época depressa deu origem a variados comentários, entre os quais se regista o do New YorK Times Herald  que a apelidava de concubina régia.

  O hotel do Buçaco, mandado construir pelo pai sob a gestão do ministro Emídio Navarro, a maior figura que o Luso alguma vez teve, dava os primeiros passos, que também foram os primeiros passos dos grandes hotéis em Portugal.

 Jardins, floresta e tranquilidade forneceriam o cenário das mil e uma noites, adequados aos subtis encontros amorosos e o Buçaco, como o teria sido em Sintra, foi o paraíso da sua libertação, aqui, com a vantagem de aproveitar a distância na ausência da rainha mãe Amélia de Orleãs , da padreirice lisboeta que diariamente o atordoava com sermões e pecados , longe de ministros , secretários e das clientelas que se movimentavam pelos meandros do poder em inventonas e matreirices sempre prejudiciais aos negócios públicos.

O rei registou nas suas memórias estes momentos de felicidade, dos poucos que lhe reservou o seu breve reinado.

  Ora como nem tudo são rosas nesta vida, também ao monarca os prazeres ficavam caros e a época não lhos perdoou. A medida que se foi tomando consciência desta relação real , as criticas , então como agora, não se fizeram esperar , e a ligação passou a ser alvo do descontentamento geral , onde sobressaiam as vozes tonitruantes  do partido republicano, mas também de progressistas e regeneradores, reconhecendo unanimemente a inconsciência  a leviandade do monarca , contrapondo aos luxos  e exageros da corte o estado miserável do reino. Tinham razão , mas á inconsciência  juntavam  ainda  a tradicional liberalidade dos Braganças no que respeitava a  excessos herdados

do rei D. Carlos , exemplo que o filho, dizia-se, se prestava a seguir. Jornais como O Dia ou o Mundo  não regateavam nas criticas e nos insultos , num país de facto caótico , ás portas da falência social e politica onde grassava o crime, a fome, a doença, a incúria.

  Paixão, que não agradava também á rainha mãe D. Amélia, consciente e farta da libertinagem do Rei D. Carlos, seu defunto marido, e comentava:“Vim a saber pelas más-línguas que Manuel ainda tem uma paixoneta por essa divazinha do music-hall parisiense, Gaby Deslys, de origem marselhesa, cujo verdadeiro nome é Gabrielle Caire. Correm boatos segundo os quais Manuel segue as pisadas do pai e os seus esforços políticos serão imediatamente anulados por isso”.

  Das razões do reino, este lúcido comentário da rainha ilustra bem o descontentamento, mas sobretudo a falta de discrição no tratamento duma questão que, não fora a época conturbada em que aconteceu, talvez não tivesse ecos nem gerado tantas criticas e comentários como veio a acontecer.

  On-line em  BUÇACO,blogs, sapo.pt

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