BATALHA BUSSACO-3ª INV -FRANCISCO-4
Peter
FRANCISCO E O GENERAL ARTHUR
Francisco nasceu no Cerquedo em 1798 filho duma numerosa família de pequenos agricultores de subsistência nas abas nordestes da serra do Bussaco. Criado entre dificuldades domésticas e uma mãe repartida por muitos, repartiu ele próprio a meninice entre os gadanhos paternos e o pastoreio do planalto, mas frente aos muros da cerca dos frades onde terminava muitas vezes a caminhada, deixava que os animais se encostassem ao sol tentador que se entornava nas pedras e sentava-se a pensar no misterioso mundo daquele interior ignorado e proibido á sua pobre conjectura. Um dia subiu o muro, escancarou-se sobre as pedras nuas e mal assentes em massa de lama e palha e quando regressou disse aos progenitores que gostaria de servir no Convento. Aconteceu que por aqueles dias Frei Bernardo do Espírito Santo, também conhecido entre os irmãos como o Frade das Coisas Terrenas , andou por ali á procura de moços para as hortas e calhou simpatizar com a figura pequena e risonha do frágil Francisco. Insistiu com os pais e levou-o consigo para moço da horta e vinha, primeiro á experiência, depois, passado um mês, já rendido á humilde docilidade do garoto, voltou para sublinhar a satisfação do mosteiro e fazer, por contrato de palavra, um contrato de trabalho.
Bonacheirão, o monge deixou satisfeitos pai e mãe, uma boca a menos e a garantia duma carreira futura ali ás portas de casa era afinal tudo quanto podiam desejar e agradeceram ao frade a boa nova por alma de todos os santos do ermo e redondezas. Estava-se no Outono de 1809 e o rapaz já passou o natal dentro da Cerca entre os irmãos, aprendendo a humilde e penitente tarefa de louvar o nascimento do Senhor no pobre isolamento da congregação.
De facto o Francisco era educado, carinhoso e maleável como um pedaço de barro aos artifícios dos devotos penitentes e tanto lhes agradavam as boas maneiras e a prontidão de atitudes que pouco tempo depois as suas faltas, como a sua ignorância, eram coisas tratadas como a pureza dos anjos nas delicadezas do céu. Ensinaram o garoto, das hortas á cozinha, ao refeitório, á livraria, iniciaram-no na leitura e no missal e arranjaram-lhe até um pequeno cubículo por quarto encostado á hospedaria, um sítio silencioso e recatado, como prova do seu reconhecimento e familiaridade. E o miúdo era, como se diz vulgarmente, pau para toda a colher e mercê da sua simpatia e disponibilidade, tornou-se um ai Jesus percorrido entre toda a comunidade, obrigada por votos e intenções ao silêncio e á contemplação. Com anjos porém, era diferente!
Foi por estes motivos que no dia 21 de Outubro pelas nove horas da manhã o Francisco foi chamado ao Prelado Maior, Frei Domingues de Deus, a fim de o acompanhar na recepção a Artur Wellesley na portaria do Convento. Pelas oito, havia já chegado, vindo de Lorvão, o quartel mestre general, hoje para obviar o assunto diríamos o staff, mas custava ao bom do frade dirigir-se sozinho ao encontro do poder. Não que não tivesse já visto generais, comandantes, navegadores ou reis, mas retirado dessa vida mundana como estava por razões do desprendimento das coisas terrenas, custava-lhe repartir o espaço interior da sua imolação com o que há tanto tempo deixara. Muito menos só. Achou por bem levar uma alavanca, como que uma bengala ou consolação e encontrou na presença do angélico garoto, talvez a figura com que Miguel Ângelo, Giotto ou Rafael pintaram o renascimento. Ciente ou não das obras referidas, Frei Domingues encontrou ali o aconchego e refúgio que perdera da vida e o melhor acompanhamento para ultrapassar a situação enquanto os irmãos, depois da primeira hora de oração matinal, dispersaram para a solene rotina da regra conventual. Por pouco tempo.
O Francisco, admirado com o garbo dos oficiais que iam chegando em luzidios amarelos e com a fruta cor dos enfeites que adornavam as bestas a todo o comprimento até aos rabos penteados, abria os olhos de espanto, mas encostado á veste protectora do prelado, mantinha-se em cerimonioso silêncio, se bem que lhe apetecesse saltar pelo átrio da entrada e segurar com a própria mão os arreios pretos e castanhos dos animais e dar duas corridas de contentamento e liberdade por sua conta e risco á volta deles. Conteve-se porém, entre o dito espanto e o medo e o olhar benevolente do geral.
Quando por fim o prelado informou o general do quarto que lhe reservara, o melhor da hospedaria, limpo e pintado para receber com dignidade o ilustre hospede, foi ao Francisco que incumbiu de lho mostrar, porém o general não gostou do aposento, não só por ser no interior do claustro mas porque tinha apenas uma entrada. Acabou por escolher o quarto da portaria á esquerda do átrio, tinha duas portas e abria uma pequena janela para fora, o que lhe dava uma rápida visão sobre o terreiro da frente. E sobre uma oliveira nova, nascediça, cujo caule tanto dava para prender as rédeas da cavalgadura como para o próprio cavalo, num puxão mais atrevido, a levar atrás de si.
Foi para ali que alguns soldados da escolta despejaram as malas e depois as transportaram ás costas para o interior, após o próprio prelado o ter mandado lavar e enxugar á pressa, com fogo que mandou atear em duas taças grandes de latão bronzeado cheias de madeira bem seca, deixando depois o brasido a terminar a secagem. Foi dali que todas as manhãs os mesmos impedidos retiraram as malas para fora e as recolocaram de novo ao fim da tarde durante sete noites, tantas quantas as que Wellington pernoitou no Convento do Buçaco.
Pelo meio-dia já toda a cerca murada estava pejada de militares ingleses, entre os quais os oficiais que se aboletavam em quanto sítio abrigado acharam de melhor, desde o convento ás ermidas. A vida da clausura foi interrompida, os frades retornaram ao mosteiro, coisa que nunca tinha acontecido no ermitério desde 1628 e as suas próprias celas foram ocupadas pela oficialidade britânica. Apenas ao Prelado foi consentido, por uma questão de cortesia politica, manter o seu quarto habitual. E a Frei António dos Anjos porque ninguém quis ocupar a sua cela por estar entulhada de farrapos, cacaréus e ferro velho, relíquias que o bom do monge vinha amontoando á revelia do prior durante grande parte da contemplação.
O resto da jornada passou Wellesley a percorrer a serra e a organizar as defesas, obras que se prolongaram até 26. Mandou erguer uma paliçada frente á Porta de Sula, rasgar o muro entre esta e o planalto á maneira de o dotar de improvisadas ameias, abrir uma porta perto da Cruz Alta, aquela que existe actualmente e abrir um estradão militar entre este ponto e a portela de Oliveira por onde facilmente e a coberto do inimigo movimentasse os homens, como aconteceu. Mandou igualmente aplanar plataformas onde colocou as peças de artilharia, empenhando em todos estes preparativos não só militares como muitos civis recrutados em redor ou dos que caminhavam com o próprio exército e as milícias. Ao princípio da tarde de 24 mandou abrir a Porta da Rainha que se encontrava tapada com um muro de pedra e cal desde 1704, altura em que passou pelo Bussaco o rei D. Pedro II e o Arquiduque Carlos de Áustria. Esta porta havia sido construída em 1693 para dar passagem á Rainha de Inglaterra D. Catarina de Bragança, visita que não se veio a verificar e com medo de que aumentasse a devassidão intra muros com nova entrada, foi entaipada pela comunidade dos Descalços.
Desde a chegada dos militares, coisa nunca vista no ermitério, a vida da clausura foi interrompida, proibido o toque dos sinos do convento bem como das sinetas das ermidas durante a noite e abertas as portas á tropa, ficou a cerca aberta a toda a gente que, durante a permanência dos militares, entrou e saiu á vontade dentro dos muros. Os frades, desalojados dos seus humildes aposentos, dormiram pela igreja, pela livraria, pela sacristia, ou até na dispensa, onde os parcos haveres foram, por ordem do comandante em chefe, protegidos, a par do respeito devido ás suas próprias pessoas.
Acabaram por sair do Cenóbio apenas no dia 28, aconselhados pelo próprio Wellington a fazê-lo uma vez que abandonada a Mata, ficaria aberta á chegada dos franceses. Se bem que a 22 tivessem seguido para Coimbra alguns irmãos mais velhos e um carro carregado dos bens mais preciosos do mosteiro!
No fim, acabariam por ficar Frei Gerónimo do Sacramento, Frei António da Soledade , o irmão Inácio da Natividade pois ao pretenderem abandonar o mosteiro na noite de 28, ela era já cerrada e a chuva tão abundante que resolveram partir na manhã seguinte. Encostaram-se no chão a dois cantos na hospedaria e adormeceram. No pequeno cubículo, do lado de fora, o Francisco já tinha adormecido há muito tempo, nem deu pela chegada dos bons frades que em silêncio passaram para descansar no interior.
Luso, Março.2010 ( 200 anos da Batalha)